sexta-feira, 22 de julho de 2011

O desembarque de escravos na costa de Tramandaí.

 
 Em l850, devido às sucessivas pressões inglesas, o Brasil independente e já em seu Segundo Reinado, através da Lei Euzébio de Queiroz (Lei n.581/4 de setembro de 1850), formaliza, na prática, o fim do tráfico de cativos para o seu território. Mesmo assim, muitas iniciativas continuaram sendo feitas, embora em menor proporção, no sentido de se manter o tráfico ilegal. Em um documento “Reservado” datado de 27 de maio de 1852, temos notícias de um desembarque ilegal de escravos em Tramandaí. Trata-se de uma correspondência do Presidente da Província Luis Alves Leite de Oliveira Bello ao Chefe de polícia.
O documento informa que somente depois de passados 20 dias, é que o governo foi informado do navio ter encalhado na costa de Tramandaí. Foi determinada a prisão dos africanos e a demissão e a abertura de processo contra as autoridades policiais locais dos Distritos, por suspeitas de que essas autoridades estivessem coniventes com o fato. As autoridades policiais da Província suspeitavam que tal navio fosse construído na costa da África e também desconheciam o número total de africanos que ele conduzia.
Nessa época, Tramandaí era um distrito de Conceição do Arroio que, por sua vez, pertencia ao município de Santo Antônio da Patrulha. Se o desembarque de cativos preocupou as autoridades da Província é porque, mesmo com a proibição da Lei, continuava a ocorrer de forma ilegal, justamente por ser a mão-de-obra escravizada, fortemente empregada na região, razão pela qual se corria os riscos de tal empreendimento.
O Vice-Presidente da Província, em 31 de julho de 1852, ordena ao Promotor Público da Comarca de Porto Alegre que informe a situação do processo instalado para apurar as responsabilidades do ex-subdelegado de polícia de Maquiné (distrito de Conceição do Arroio) Ignácio de Araújo Quadros, suspeito de conivência ou omissão diante do desembarque dos escravos em Tramandaí.
Vinte escravos haviam sido aprendidos e, depois de registrados pela autoridade policial, foram enviados para trabalhos na Santa Casa de Porto Alegre e Pelotas até o Governo Imperial determinar os seus destinos, sendo que ainda haviam dezoito fugidos. O vice-presidente da Província determina ainda, que todos os africanos, existentes na Santa Casa, inclusive os aprendidos, fossem matriculados no Juízo de Órfão da Capital. Permanecia, entretanto, por parte das autoridades o receio de novos desembarques de escravos na região.
Em 15 de janeiro de 1853, o Presidente da Província João Lins Vieira emite um documento “reservado” ao Capitão Francisco Antonio de Moraes, onde menciona o referido desembarque em Tramandaí aludindo à “embarcação suspeita de empregar-se ao tráfico de africanos...”, e ordenando para que se fizessem novas diligências no local, a fim de se evitar novos desembarques. Caso fosse identificada uma nova embarcação suspeita de trafico ilegal, e, no caso de haver resistência deverá “... o referido capitão empregar as forças de que dispõe para efetuar a diligência de que vai encarregado, capturando e conduzindo para esta capital os agressores”.
Três africanos fugidos do desembarque na Costa de Tramandaí foram encontrados na casa do Subdelegado de Conceição do Arroio. Os documentos não mencionam, apurados os fatos, o que lhe aconteceu, todavia, os escravos foram apreendidos. O subdelegado de Polícia do Distrito de Maquiné, Ignácio de Araújo Quadros, foi condenado em processo de responsabilidade a cinco meses de suspensão do emprego por ter comunicado o fato com tanta demora que deu causa a não se capturarem todos os africanos desembarcados.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Jornada Sandra Jatahy Pesavento: Visões do Cárcere

Data: 15 de agosto de 2011, das 9.30h às 18.30h, no Memorial do Judiciário do RGS (Palácio da Justiça).

Percursos Historiográficos I: Exposição das obras completas, textos e imagens de Sandra Jatahy Pesavento

No Memorial do Rio Grande do Sul, aberta ao público de 15 de agosto a 03 de setembro de 2011.

Eventos em parceria com o Instituto Histórico e Geográfico do RGS, Memorial do Judiciário do RGS, Memorial do RGS, Câmara dos Vereadores de Porto Alegre, UNILASALLE, RBSTV e Zepellin Filmes. 
Mais informações no link abaixo: 


domingo, 10 de julho de 2011

Fronteiras entre o Real e o Imaginário: O diálogo possível entre História e Literatura

A produção literária, desde a Grécia Antiga, vem moldando seus enredos e suas tramas utilizando-se de contextos e fatos históricos. Os romances épicos, que em muitos casos terminam virando, contemporaneamente, filmes ou novelas de grandes sucessos, exploram os aspectos de época, muitas vezes, adicionando elementos mentais e culturais de nosso tempo.  Essa é uma questão perigosa, pois pode gerar os famosos anacronismos históricos. Seria algo como um romance que se passa no Egito, na época de um faraó qualquer, falar em “burguesia egípcia”. Ora, “burguesia” é um conceito que começa a ser construído por volta dos séculos XII-XIII, no Ocidente Medieval. Portanto, romances onde conceitos ou ideias são usados fora de seu contexto histórico, tornam-se anacrônicos.
 Todavia, a literatura propõe-se, nesses casos, a uma reinterpretação lúdica da História. Se, por um lado isso agrada ou atinge os leitores, por outro, desagrada os historiadores que veem em tal postura, uma deturpação da memória histórica, ou seja, a subjetividade do escritor reescrevendo, idilicamente a História. Tal problema é pertinente,  a nível teórico, talvez porque seja essa a representação que permanecerá não somente na memória individual do leitor, mas na própria memória coletiva das gerações.
Assim sendo, o texto literário resguarda em suas entranhas uma boa dose de “perversidade”, isto é, uma intencionalidade nem sempre clara, um componente ideológico que, independente do que pensa o autor, ganha vida própria na mente de cada novo leitor. Bakhtin[1] assevera que “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.” Logo, a Literatura, assim como a História, têm o poder de criar representações coletivas, forjando tradições, mitos e identidades.
Ocorre que, a partir, principalmente da segunda metade do século XX, a História passou a valorizar a produção literária enquanto fonte para a pesquisa historiográfica. A problematização do texto ficcional permite ao historiador um descortinar de novos referenciais, em seu modelo de análise. Sabemos[2] que a narrativa ficcional, ao alcançar nível artístico elevado, pode torna-se valiosa fonte documental, quando expressa os cenários, a linguagem, as concepções e visões de mundo, as relações de dominação de classes, etc.
Depreende-se que o “diálogo” entre História e Literatura se torna uma via possível de estudos de fronteiras. Em que pese essa constatação, do ponto de vista de sua função, o papel do historiador não é fazer Literatura. A tendência de historiadores utilizarem-se da produção literária, ao longo e, mais intensamente no final do século XX, para a produção do conhecimento histórico, abriu um leque de questionamentos no que, para alguns, seria a transformação da História (enquanto área do conhecimento científico) em uma espécie de expressão da própria Literatura. Nesse sentido, Chartier[3] foi incisivo ao afirmar: ”o historiador não faz literatura”, pois o ofício de historiador, para ele, possui “operações específicas” que podem ser relacionadas na seguinte dinâmica metodológica: construção e tratamento de dados, produção de hipóteses, crítica e verificação de resultados, validação da adequação entre o discurso do conhecimento e seu objeto.
A seu turno, a Literatura não é somente um fenômeno estético, mas também uma manifestação cultural e, sob esse aspecto, possui imensa organicidade de registros da experiência humana. A obra literária, portanto, dialogando com os diversos contextos sócio-culturais, permite ao historiador uma leitura problematizada, permeada de possibilidades para um “algo mais” em termos de análise da construção dos discursos e representações sobre o passado.
Logo, em cada época, as representações[4], através dos elementos discursivos, tratam de concretizar o desejado, o vivido e o não-vivido, os sonhos e aspirações: o bom cidadão, a mulher ideal, o valente guerreiro. A Literatura, nesse particular, é enfática, como apresentou Aristóteles na Poética: “[...] se apreende que o poeta conta, em sua obra, não o que aconteceu e sim as coisas quais poderiam vir a acontecer e que sejam possíveis tanto da perspectiva da verossimilhança como da necessidade.”
Notas


[1] BAKHTIN, Michail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 95
[2] MAESTRI, Mário. Deus é Grande o Mato é maior. História, trabalho e resistência dos trabalhadores escravizados no RS. Passo Fundo: UPF, 2002. p.131.
[3] CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, n. 13, Jan/Jun. 1994. p. 110-112.
[4] Entendemos por “representação” as práticas e os sistemas simbólicos por meios dos quais os significados são produzidos.

Os sinuosos caminhos do regionalismo

Muitos pesquisadores, ou mesmo escritores, se dizem “regionalistas”, defensores de uma produção literária localista. A rigor, consideram-se imbuídos da “missão” de salvaguardar os elementos identitários da região. Do ponto de vista teórico, entretanto, a discussão é muito mais ampla e exige a apreciação de múltiplas questões, normalmente, ignoradas ou simplificadas arbitrariamente. Para alguns autores o regionalismo é uma questão problemática, ainda não totalmente digerida academicamente. O problema já começa com a própria palavra. O vocábulo “regionalismo” deriva de “regional” ou “região”, todavia, no terreno das ciências sociais – e aqui não estamos discutindo um conceito meramente geográfico – a discussão se complexifica.
Há um critério levantado por Fischer, que se refere à ideia de Imperialismo, ou seja, temos um centro detentor do poder e o resto que permanece em sua órbita: o regional ou periférico. Estende-se, também, a dimensão do regionalismo ao paralelismo entre o mundo urbano e sua cultura e o mundo rural, questão interposta, no Ocidente, a partir do Renascimento (Séc. XV-XVI). É o período de transição do mundo feudal para o mundo burguês, do medievo para a modernidade. No processo de constituição da nacionalidade brasileira, o romantismo desempenhou papel intelectual relevante, considerando a vastidão do território nacional, predominantemente rural, e a figura do índio ou nativo. Pensava-se nas distantes Províncias como o caso do Pará, Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Sul, e suas “singularidades” no extenso Brasil.
Conforme Fischer, com esse sentido localista passou-se a nutrir, no interior dessas mesmas Províncias, um sentimento ressentido e, mesmo, separatista, no propósito de singularizar a “parte” do “todo”. Flávio Loureiro Chaves concorda que o regionalismo, no Rio Grande do Sul, se originou e evoluiu a partir de uma tradição romântica, numa perspectiva de documentar o espaço local e seu cenário típico, do folclore e dos falares regionais no universo ficcional. Essa ideologia do regionalismo, no entanto, quase sempre corre o risco do excesso de idealização, um acentuado realismo, por vezes demarcando uma zona de conflito entre o real e o imaginário.
O regionalismo rio-grandense se corporificou associado, também, a um ideário de tradição. Dê que tradição estamos falando? Sabemos que sociedades tradicionais se constituem através de processos históricos de longa duração, e mantém-se em situações de difícil mutabilidade. Nesse sentido, os papéis sociais e culturais são milenarmente estabelecidos, de tal forma que as novas gerações sentem-se a eles plenamente pertencentes. O regionalismo idealizado pelo romantismo brasileiro configura uma “tradição” ficcional e lúdica. No Rio Grande do Sul do século XIX, não tínhamos uma sociedade tradicional, mas conservadora.
Em sua sinuosidade, pode-se pensar o regionalismo como uma forma de dissociar o particular do universal. Para Chaves, o regionalista entende o indivíduo apenas como síntese do meio a que pertence. Portanto, o regionalismo é uma forma de isolamento, forma um tanto ingênua, de separar a parte do todo, de fragmentação da realidade sob a égide de uma identidade arquetípica, talvez melhor explicada por Jung.
Conceituar uma obra ou autor de “regionalista” já se trata de impor um “limite” complexo para o universo da arte que, conforme Aristóteles em sua Poética: é o “espaço da possibilidade”. Considerar esse ou aquele escritor um regionalista é, por certo, ter um olhar simplificador sobre sua obra. A complexidade em se tratar o regionalismo na literatura é se pensar que, apesar de certos escritores construírem seus enredos abarcando espaços geográficos e culturais delimitados, o núcleo abordado termina enfatizando questões universais. O folclore é universal! O sofrimento, o amor, a opressão social, os conflitos familiares, os encontros e desencontros amorosos, as misérias, não estão em toda parte?
O romance A Viuvinha, de José de Alencar, por exemplo, narra a história de Jorge, filho de um negociante rico que falecera, e que foi criado por velho amigo de seu pai. Quando chega à maioridade, e passando a tomar conta de seu patrimônio, Jorge descobre os prazeres que o dinheiro pode proporcionar e entrega-se aos seus desejos e vaidades. Mas a busca desenfreada e delirante do gozo o faz sentir um vácuo e, surge o tédio. Com o tédio, a solidão. Percebendo que a felicidade não estava no delírio do prazer, Jorge busca num templo religioso aquele “algo mais” que representa os anseios mais profundos do ser humano. Mas a vida é curiosa! Nesse templo, o personagem de Alencar conhece uma jovem, de 15 anos – Carolina – por quem se apaixona perdidamente. Pouco tempo depois, já estavam com o casamento marcado e, ambos, com os corações enternecidos, almejavam o sonho de toda a humanidade: a felicidade.
Mas a felicidade inconstante, na trama de A Viuvinha, não se distancia muito da vida real. O que ocorre é que o desfecho literário buscou, na maioria das vezes, sintetizar as aspirações humanas por um “final feliz”. Não raro, a questão da felicidade está associada, no texto ficcional, a um amor romântico que, a cada nova cena, se vê cercado de crises e obstáculos, distanciando os protagonistas, e por extensão o próprio leitor, de seu ideal de plenitude e realização que deve ser atingido somente nas últimas páginas do livro.
Percebe-se a universalidade do texto literário, justamente por ele enfocar questões essenciais para o ser humano independentemente do tempo, da cultura, e do espaço. Em Olhai os lírios do campo, Eugenio, personagem central do romance de Érico Veríssimo, caminhando em uma madrugada pelas ruas desertas, passa em revista sua vida e, diante dos problemas enfrentados, indaga-se se um dia chegaria a encontrar a paz interior, tão almejada. Relendo as cartas de Olívia, sua antiga amiga e depois amante, Eugenio começa a vislumbrar, nelas, um rico manancial de ensinamentos. Eugenio é de família pobre vivendo no período de 1914/1930, período da República Velha. O romance discute, também, os conflitos sociais da época, conduzindo o leitor, de alguma forma, a pensar sobre essas questões no presente.
Em O Continente temos uma natureza dinâmica e simbólica, expressa num elemento permanente: o vento. Para Donaldo Schüler, (Apud. SURO, p. 148-149), o ato de “soprar” evoca o passado, e essa relação do leitor com o tempo, é trabalhado em planos narrativos diferentes: o passado recente, que vai desde a madrugada do dia 25 de junho de 1895, até a manhã do dia 27 do mesmo mês; e o passado remoto, que começa em abril de 1745 até 1895, perfazendo um período de 150 anos. Segundo alguns estudiosos, O Continente expressa uma teoria cíclica da história. Para Suro, no entanto: “O que acontece é que esse tempo histórico é regido por uma estrutura cíclico-mítica, baseada na natureza, que faz com que se repetem basicamente os mesmos processos históricos de geração em geração.” (Idem, p. 149)
Ora, essa é uma questão determinante para pensarmos a fragilidade do conceito de “regionalismo” na literatura, fundado numa concepção restrita de isolamento ou de fragmentação entre o específico e o geral. Entendemos que a literatura, por mais que trabalhe com questões localizadas, estará sempre, como uma espécie de fio-condutor, discutindo questões pertinentes ao universo humano e, nesse sentido, qualquer rótulo é impor-lhe um limite desnecessário.

Bibliografia


CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: Regionalismo & Literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.

CHAVES, Flávio Loureiro. Érico Veríssimo: Realismo & Sociedade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981.
FISCHER, Luís Augusto. Literatura Brasileira. Modos de usar. Porto Alegre: L&PM (Coleção L&PM Pocket), 2008.
SURO, Joaquim Rodriguez. Érico Veríssimo: História e Literatura. Porto Alegre: DC Luzatto Editores Ltda, 1985.
às 20:57